No Brasil, apenas cinco estados operam pessoas trans. DF está de fora
Entre as razões, aparecem o preconceito da classe médica quanto ao tema, além da ausência de dados sobre população travesti e transexual no país
atualizado
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Sete anos após o Ministério da Saúde regulamentar o o ao processo transexualizador pelo Sistema Único de Saúde (SUS), apenas cinco hospitais se habilitaram oficialmente para realizar o processo de readequação de gênero, a “mudança de sexo”. Desde 2008, foram realizados 268 procedimentos cirúrgicos com verba federal. Já o número de consultas ambulatoriais é de 8,1 mil.
A habilitação dos hospitais garante que cada procedimento voltado para pessoas trans seja custeado pelo governo federal. O pedido de credenciamento deve ser feito pelas instituições interessadas, como foi o caso do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Goiás (UFG), do Hospital de Clínicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), do Hospital Universitário Pedro Ernesto, da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo (USP) e do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).
A fila de espera é desconhecida. Alguns falam em centenas, outros em milhares de pessoas em busca de atendimento. O dado é gerenciado pelas próprias unidades, uma vez que o Ministério da Saúde só realiza esse tipo de controle no caso de cirurgias de transplantes de órgãos. A estimativa apresentada pela representante das mulheres trans no Comitê Técnico de Saúde Integral LGBT do Ministério, Rafaelly Wiest fala num tempo médio de espera de dez anos para pessoas dos estados onde há hospitais credenciados. “Pra quem é de fora, não existe uma perspectiva”, critica Rafaelly, que integra a diretoria executiva da Associação Brasileira de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis e Transexuais.
Em geral, cada hospital credenciado realiza entre uma ou duas cirurgias por mês. Podem se submeter ao processo pacientes que tiverem um laudo psicológico atestando o Código Internacional de Doenças (CID) 10 F 64.0, referente ao “transexualismo” – geralmente obtido após dois anos de acompanhamento psicológico. O CID, no entanto, é criticado pelas pessoas trans, que reivindicam a adoção do conceito de “transexualidade” para combater o rótulo de doença atribuído às diferentes identidades de gênero – a exemplo do que foi feito com o termo “homossexualismo”, derrubado em 1990 pela Organização Mundial da Saúde (OMS).
Um dos elementos que ajudam a compreender o baixo número de instituições preparadas para o atendimento de travestis e transexuais é o caráter experimental atribuído à cirurgia de transgenitalização masculina pelo Conselho Federal de Medicina (CFM). No caso feminino, as cirurgias podem ser realizadas regularmente desde 2002, tanto por médicos particulares como pelo SUS em geral. Já a neofaloplastia fica restrita aos hospitais universitários.
“Nosso grande problema está no convencimento da classe médica em ver que isso é uma questão de saúde e não um procedimento estético. Há preconceito”, diz Rafaelly.
“Infelizmente, a posição oficial do CFM é muito tímida, quase nula. Toda essa política foi aprovada e pactuada com eles, mas não existe uma divulgação e um apoio real”, completa ela.
Diante das restrições, quem consegue juntar dinheiro chega a pagar mais de R$ 30 mil para realizar cirurgias de construção de pênis ou vaginas, seja no Brasil ou no exterior. Entre os homens trans, os destinos mais citados são Sérvia e Alemanha. Já entre as mulheres, a Tailândia é uma das mais procuradas. O valor, entretanto, é inviável para a maioria dos transexuais, que costumam ter pouco apoio familiar e sofrem com descriminação nas escolas e no mercado de trabalho. Dados da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), por exemplo, revelam que 90% das pessoas trans se prostituem no Brasil.
Formação
De acordo com o cirurgião plástico de Brasília Erick Carpaneda, a formação de especialistas brasileiros na área é outro entrave. “Estamos amarrados até que a lei mude, mas não basta uma simples mudança legal”, diz ele, em seu consultório particular no Lago Sul. “Depois que a lei mudar, ainda teremos um longo caminho de formação de médicos, que talvez seja muito mais difícil. Não conheço ninguém que saiba fazer essa cirurgia ou sequer que tenha visto esse tipo de procedimento”, critica o cirurgião, uma das referências entre os homens trans brasileiros para mamoplastias.

A falta de preparo para receber a população trans é denunciada pelos próprios responsáveis pelo atendimento. “Muito provavelmente, essa população nem chega ao serviço de saúde, porque não se sente acolhida”, explica a psicóloga Suzana Livadias, coordenadora do Espaço Trans do Hospital das Clínicas de Pernambuco. “Falta a compreensão do profissional de saúde de que isso é uma política pública, algo que é direito do cidadão, que está sendo ofertado pelo serviço público e que ele, como parte desse serviço, tem de abraçar essa causa.”
Na opinião da diretora do Ambulatório de Saúde Integral para Travestis e Transexuais de São Paulo, Maria Clara Gianna, “a ausência de políticas que reconheçam a existência dessa população é um dos principais problemas”. Diante disso, Gianna defende a inclusão de um critério de identidade de gênero nos censos demográficos e na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), para que seja possível mapear a demanda e, assim, ampliar a oferta de serviços. Atualmente, nem o SUS permite uma classificação dos pacientes em pessoas cis ou trans – termos utilizados para afirmar se a pessoa se identifica ou não com o gênero de nascença.
Entraves
Campeão de atendimentos, o Hospital das Clínicas de Porto Alegre impõe restrições à realização de cirurgias em pacientes de outros estados. Mesmo que a pessoa tenha o laudo psicológico, o hospital exige que seja realizado um acompanhamento quinzenal de dois anos, no local. “Tem gente que chega aqui e acha que vai ser operada imediatamente, mas não vai”, diz a psiquiatra Maria Inês Lobato, coordenadora do Programa de Transtorno de Identidade de Gênero (Protig). “No mínimo teria de ter um nível de treinamento e de comunicação conosco. Só que, se houver isso, o problema é que daí vai inchar e nós não vamos conseguir operar nunca mais”, explica.

No Distrito Federal, o grupo transexualizador do Hospital Universitário de Brasília (HUB) só oferece atendimento psicológico. De lá, os pacientes são encaminhados para atendimento em algum dos hospitais credenciados, para terem o a procedimentos como a hormonioterapia ou as cirurgias de readequação de gênero. De acordo com a psicóloga Sandra Studert, coordenadora do programa em Brasília, há uma expectativa de que, em breve, o hospital ofereça ao menos atendimento endocrinológico. “Infelizmente, nem tudo o que está escrito na lei, na política pública, é verdadeiro no sentido de estar existindo. A gente espera que um dia aconteça, mas ainda não temos esse serviço, como deveríamos ter”, lamenta.
Imagens: Rafaela Felicciano