BBB20 expõe racismo velado e militância incoerente
No Dia Internacional Contra a Discriminação Racial, Metrópoles convida escritora Joice Berth para analisar racismo no Brasil e na TV
atualizado
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Em 21 de março, a comunidade negra celebra o Dia Internacional Contra a Discriminação Racial, criado pela Organização das Nações Unidas em memória ao Massacre de Shaperville, ocorrido há 60 anos, na África do Sul. Na data, uma multidão desarmada lutava por direitos da população negra e foi contida por tiros de metralhadora. O episódio ressaltou a importância de combater a violência gerada pelo racismo, mas evidentemente não foi suficiente para eliminá-lo.
Segundo estudiosos, embora muita gente acredite que a discriminação racial foi superada e ignore a importância de lutas travadas pela comunidade negra, o preconceito existe e tem sido evidenciado, inclusive, por programas populares de TV, como o Big Brother Brasil.
O tema ainda não foi abordado explicitamente dentro do reality, mas tem ganhado destaque de forma recorrente graças a vários comentários racistas feitos pelos participantes, e condenados pela web.
O alvo, quase sempre, é Babu Santana, ator com mais de 20 anos de carreira, negro, sincero, fumante e o único da casa que não se rende, vez ou outra, a protocolos fitness.
Desde o início do programa, ele vive uma espécie de isolamento social e só encontrou espaços no grupo dos homens apontados como machistas e politicamente incorretos. Após reproduzi-los, cravou sua rejeição dentro da casa.
Já foi comparado a um monstro, é excluído de grupos e comemorações, está sempre envolvido em uma atividade doméstica e virou alvo constante de piadas de teor preconceituoso. Como a feita por Ivy ao deparar-se com um pente-garfo do participante.
Em entrevista ao Metrópoles, a escritora e ativista Joice Berth afirma que, apesar de chocar quem assiste o programa, os episódios vivenciados por Babu são um reflexo da vida real dos jovens negros e pobres.
“Há, em torno do homem negro, o estereótipo do agressor, do violento, do bestial, do incontrolável”, explica. Ela lembra outras produções culturais em que o tema foi abordado.
“No filme A espera de um milagre isso é ponto central, já que o homem negro é preso e acusado injustamente por um estupro que ele tentou evitar que ocorresse. Encontramos muitos casos parecidos ao longo da história. Muitos homens negros, sem consciência racial que os faça entender o quanto é perigoso para ele carregar esse estereótipo e, muitas vezes, na intenção de se proteger do racismo, assume essa postura mais agressiva.”
Apesar de não acompanhar o programa, ela acredita que falas como a de Ivy, possam, sim, ser consideradas preconceituosas. “Talvez esse medo seja realmente uma expressão do racismo dessa pessoa, pois o homem negro é sempre visto como o temível”, diz.
Exclusão
Outra problemática vivida por Babu no BBB20 e compartilhada por ele com Thelma, também negra, é a ausência de pertencimento a grupos estabelecidos na casa. Enquanto Babu permanece ao lado do único participante que lhe acolheu, a médica anestesista já chorou no confinamento por se sentir excluída pelas próprias amigas.
“Essa é meio que a história da minha vida e o que acontece com pessoas negras que recusam esse lugar de inferioridade, que é o que grupos predominantemente brancos nos reservam”, defende Joice.
“Pessoas negras que demonstram personalidade, inteligência e consciência racial com frequência são rejeitados pelos grupos brancos. É mais uma prática do racismo, excluir negros que são assimilados como ‘perigosos’. Eles nada mais são do que negros que não negociam sua humanidade e exigem respeito e simetria no tratamento destinado a ele”, opina.
Incoerência
No Twitter, apoiadores e criticos de Babu divergem sobre as atitudes que o levaram a ser isolado pelos demais participantes. Uma vez que os questionamentos giram em torno de manifestações machistas e homofóbicas do ator, ativistas criticam a seletividade na defesa de questões raciais pelas feministas da casa.
Nesse caso, é importante ressaltar que, assim como as mulheres não são obrigadas a esclarecer atitudes machistas, pessoas alvos de preconceito racial também estão isentos dessa obrigação. A solução? Diálogo. Mas só para quem tem “estrutura emocional”.
“É importante deixar explícito que nenhuma pessoa na condição de oprimido, seja pela raça, seja pelo gênero, deve se sentir na obrigação de ensinar, até porque nós também temos trabalho interno e externo a fazer no enfrentamento das mazelas diárias que vivemos. Estamos na era da tecnologia, tem internet para muita gente, tem também muita gente falando, produzindo coisas, o assunto está ‘na mesa'”, pontua Joice.
Para a especialista, esse é uma missão de toda a sociedade, marcada historicamente por opressões formadoras de diversos níveis de desigualdades.
“Observamos um aumento de queixas e registros de abalos emocionais em pessoas negras. Isso prova que não damos conta nem de nós mesmos e das questões terríveis que estão cristalizadas em nosso âmago, por conta das inúmeras situações vexatórias, de solidão, de descaso e de violências que o racismo nos impõe“, completa.
Pente-garfo
Em resposta aos comentários feitos sobre o pente-garfo de Babu, ativistas foram às redes sociais nessa semana para lançar o movimento #EuPenteio. Além de exaltar a importância do pente como recurso estético e símbolo de empoderamento negro, as publicações marcadas com a hashtag explicam como a atitude de Ivy reforça o chamado racismo velado.
“O pente-garfo surgiu há 6.000 anos na África. Existem registros de pentes no Egito Antigo que tinham grande simbologia e eram usados por nossos ancestrais como forma de organizar a própria sociedade, pois era através dos penteados que se indicava o status, estado civil, identidade étnica, região geográfica e classe social”, explicou o apresentador Spartakus Santiago, em publicação no Instagram.
A humorista e ativista Maíra Azevedo também se pronunciou sobre o acontecimento nas redes sociais e afirmou que “racismo não é entretenimento”. “O que está ocorrendo no BBB é uma amostra de como as pessoas negras são tratadas aqui fora”, afirma.
Papel da mídia
Na opinião de Joice, embora as mídias e veículos de comunicação funcionem muitas vezes como “braço da discriminação, do silenciamento, do apagamento e de todas as práticas que compõe a tecnologia do racismo”, eles também atuam positivamente, colocando o tema em debate.
“Pode inverter o jogo e trazer aos telespectadores um novo padrão de produção imagética, pautado por narrativas que estabeleçam uma forma muito mais humana e realista, apresentando não só pessoas negras, como também pessoas indígenas, LGBTI, com deficiências e todos aqueles que nunca foram representados de maneira honesta e produtiva”, acredita.