Vamos enfrentar o racismo e a intolerância religiosa de mãos dadas?
Exposto na vida cotidiana e nas redes sociais, o ódio ao povo negro põe o Brasil, um país de formação multiétnica, em risco de paz
atualizado
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Por que se perseguem as religiões de matriz africana no Brasil? Por que queremos negar a importância da influência negra em nossa formação? Há duas semanas, seguimos em estado de choque com os vídeos terroristas divulgados nas redes sociais. Sob a mira de ameaças de morte de uma suposta milícia de traficantes, religiosos são obrigados a espatifar ao chão o seu sagrado.
Essas perguntas exigem um estudo profundo. am por questões sociais, econômicas e culturais, que não cabem em algumas dezenas de palavras. No entanto, sabemos que, no Brasil, o mercado da fé move cifras milionárias e os interesses extrapolam o horror imediato das cenas assistidas.
Na raiz desse complexo problema, estão dois fenômenos que “descaradamente” colocaram a “cara no sol” e desafiam a sociedade brasileira nessas duas primeiras décadas do século 21: o racismo e a intolerância religiosa.
Algumas pessoas, e são muitas, aram a escrever em suas “cartolinas imaginárias” o que atormentam as suas almas. Enfrentam o risco de serem punidas por injúria e racismo e exercitam nas redes sociais a ideologia mesquinha da supremacia da raça. Muitos mantém discursos contraditórios: louvam um deus misericordioso e atiram pedras no que julgam ser inferior.
O ódio ao negro e às suas crenças no Brasil está registrado desde a escravidão e o seu cruel processo de alforria. Abastece-se no exercício diário de banalizar a quantidade de jovens negros que são mortos diariamente nas periferias brasileiras. Permanece na quantidade de afrodescendentes que não tem o ao Brasil que estuda, acumula, gasta e se diverte. Perpetua-se no incômodo da política de cotas e de reparação. Fortifica-se na destruição dos terreiros de Umbanda e Candomblé, religiões demonizadas pelo preconceito. Felizmente, uma potente militância negra está nas redes sociais e na vida cotidiana exercendo esse protagonismo e combatendo esse Brasil com febre.
Quem conhece essa dor é quem tem a cor negra na pele. Eu não possuo. Mas talvez tenha consciência de parte da dimensão desse flagelo. Sei o que é estar num ônibus de Salvador barrado numa revista policial e ser “poupado”. “Você, não precisa descer”, disse-me o policial negro. ei por isso quando tinha 16 anos e entendi profundamente o que não me ensinaram na escola.
Como se sente aquele que é olhado com desconfiança nas compras diárias dos supermercados e dos shoppings? Já se colocou neste lugar?
As redes sociais estão cheias de novos feitores e de senhores de engenhos. Alguns têm a palavra de Deus à boca e a chibata às mãos. Nas redes sociais, muito frequentemente somos assolados com notícias de negros bem-sucedidos sendo atacados por racismo. A Miss Brasil, a atriz de novela, a cantora trans, o ator que poderia ser o galã da novela das nove, mas não é. São açoitados porque querem que voltem ao seu espaço demarcado: a cozinha, o quintal, o quartinho dos fundos, o ônibus lotado, o subemprego, as ruas e o risco de ser cooptado para a marginalidade.
Esquecem-se que, no século 21, lugar de negro é na universidade. É na chefia das repartições, nas pesquisas internacionais, nos ministérios, em todos os postos de trabalhos que assim desejar. Por que não na Presidência da República? O agitador cultural Celso Ataíde organiza um partido de negros para dar voz às favelas no Congresso Nacional, comandado pelas bancadas evangélicas e ruralistas. Como se diz nas quebradas, Demorô!
Num recente documentário de tevê da Globonews, ouvi de uma mãe de santo quase centenária o horror de ser perseguida. Ela revela que nem no começo do século 20 o Brasil era tão violento. Pensa em vender o seu terreiro, com fundamentos religiosos de uma vida de fé. Nos xingamentos que sofrem, os de racismos estão intimamente conectados aos atos de intolerância.
Nesse mesmo programa, um pastor conta, com orgulho de um herói, como insuflou fiéis a insultar uma imagem de Preto Velho, colocada numa praça do Rio de Janeiro. Na Umbanda, o Preto Velho representa a sabedoria. Ele detém conhecimento das folhas, das curas, dos caminhos. Em evolução, é um espírito de luz. O religioso se refere a essa figura com um desprezo, que fica evidente não se tratar só de intolerância religiosa.
É o complexo da Casa Grande agoniada em perceber, que, nas senzalas, havia seres humanos melhores do que os que eram servidos à mesa. Quem ou a infância num ex-engenho escravocrata sabe do que eu estou falando.
É preciso refletir sobre os caminhos que estamos traçando para o país. A mistura de religião e preconceito gera ódio em sua pior esfera de vibração. É ódio de guerra, de extermínio. Basta esticar o pescoço para olhar a origem do Estado Islâmico. Ao mesmo tempo, temos uma oportunidade única para nos repensarmos como uma nação que é fruto de brancos colonizadores, índios subjugados, negros escravizados e imigrantes esperançosos. O racismo e a intolerância religiosa são duas sombras nefastas que caem sobre a nossa origem singular. É preciso enfrentá-los de mãos dadas.