Inóspita e com 3 mil serpentes: como é trabalhar na Ilha das Cobras
Karina Kasperoviczus, do Instituto Butantan, detalhou ao Metrópoles como são as expedições para a Ilha das Cobras, no litoral paulista
atualizado
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Localizada a 30 quilômetros do continente, entre os municípios de Itanhaém e Peruíbe, no litoral de São Paulo, a Ilha das Cobras é o segundo lugar do mundo com maior concentração de serpentes. Com aproximadamente 3 mil répteis, a ilha abriga duas espécies de jararacas: a Ilhoa (Bothrops insularis) e a Dormideira (Dipsas mikanii).
A tecnologista do Laboratório de Ecologia e Evolução (LEEv) do Instituto Butantan, Karina Kasperoviczus, que já visitou o local cerca de 20 vezes, contou ao Metrópoles como é a experiência de realizar uma expedição em um dos locais mais inóspitos do planeta.
Karina trabalha no Butantan desde 2004 e começou a realizar as viagens para a Ilha das Cobras em 2007. Só este ano, ela foi três vezes ao local. A expedição mais recente foi em abril.
Veja fotos:
As expedições, normalmente, duram 5 dias. Em média, segundo Karina, os pesquisadores encontram cerca de 1 cobra por hora.
“A gente consegue ver bastante bicho. Algumas viagens, a gente vê mais de 30, 40 bichos. Então é uma média de um bicho por hora. Às vezes, um pouquinho mais, um pouquinho menos, dependendo da época do ano”, disse Karina.
Os pesquisadores do Butantan costumam aproveitar as idas da Marinha e do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) ao local para fazerem pesquisas. Além disso, quando estão trabalhando com projetos, eles montam um cronograma de viagens que pretendem fazer, sendo, geralmente, uma vez por estação, com datas pré-estabelecidas.
Preparo para expedição
O preparo para uma expedição começa com cerca de um mês de antecedência, com avisos ao barqueiro e ao ICMBio. O grupo, então, monta as equipes, que costuma ser de 5 a 10 pessoas.
“A gente só tem certeza que realmente vai com dois, três dias antes da viagem, porque o mar pode virar e a gente não consegue embarcar”, revelou Karina. “Já aconteceu várias vezes. Já aconteceu de a gente chegar lá e ter que voltar porque não ia conseguir desembarcar. Já aconteceu de a gente ter que deixar tudo na ilha e voltar correndo”, contou.
Os pesquisadores saem de São Paulo para Itanhaém por volta de 4 horas da manhã, porque eles precisam estar dentro do barco em direção à Ilha das Cobras às 6 horas, para conseguirem pegar a maré alta. Com a maré baixa, o barco pode entalar. Após 2h30 a 3h no barco, a equipe chega na ilha.
Começa, então, mais um problema: o desembarque. Como a ilha não tem praia, os pesquisadores precisam desembarcar em uma pedra, que é lisa e tem cracas, carregando todo o equipamento por um trilha, que é uma subida. O trecho não é longo, dura cerca de 20 minutos, mas eles precisam subir carregando até trinta quilos nas costas, descendo e subindo várias vezes para pegar toda a “bagagem”.
O que pesquisadores levam para uma expedição de 5 dias na Ilha das Cobras:
- Barraca
- Colchão
- Fogão/fogareiro
- Equipamento de campo
- Caixa de contenção
- Microscópio
- Aparelho de tração
- Comidas para uma semana
- Todas as águas que eles vão usar para beber e cozinhar
“Banho, esquece, não tem como. Ou você bebe água ou você toma banho”, brincou Karina. “É o que a gente chama de ‘campo selvagem’, não tem absolutamente nada, nem água, nem banheiro, nada.”
Quando finalmente chegam à ilha, já são 9 horas da manhã. Até subir com todo o equipamento, 1 hora da tarde. Neste momento, os pesquisadores armam acampamento ao lado do farol da Marinha que existe lá, comem algo e já iniciam a expedição.
Apesar de o local não ficar rodeado de cobras, é possível avistar algumas serpentes por ali. “A gente está, por exemplo, de madrugada, ando pelo acampamento e ela está ali, no cantinho. Ou você olha para cima e ela está em uma árvore”, contou Karina.
A primeira vez em que a tecnologista pisou na Ilha das Cobras, ela teve a sensação de sonho realizado. “Eu já trabalhava com esse animal aqui no continente […] Então, ver esses animais na ilha pela primeira vez é um sonho. É um sonho porque você está em um lugar totalmente inóspito, um lugar perigosíssimo, só que com os melhores pesquisadores do Brasil nessa área. De verdade, parece que você está sonhando”, itiu.
Mesmo já tendo ido 20 vezes ao local, Karina revelou que toda vez que ela vai, a sensação é a mesma. “A primeira foi a melhor, mas é a mesma coisa. Você fala assim: ‘Que lugar incrível’. E a ilha tem uma coisa meio mágica, eu não sei explicar. Ela tem um ar, assim, meio diferente.”
Maior perrengue
Uma das piores experiências pela qual Karina ou na Ilha das Cobras foi em 2008, no inverno, durante uma viagem que, segundo ela, “deu tudo errado”. Ela e o grupo de pesquisadores acabaram saindo muito tarde de São Paulo, chegando na ilha só por volta das 17h30, precisando subir a trilha à noite.
Karina disse que desembarcar já foi ruim e começou a chover de madrugada. Às 6 horas da manhã do dia seguinte, ela foi acordada por um amigo, dizendo que eles precisavam resolver coisas importantes: o tempo havia virado e eles precisavam decidir, naquele momento, se iriam ficar na ilha para realizar a expedição ou se iriam embora e largariam tudo lá.
Com a virada do tempo, os barqueiros iam embora naquele momento e não tinham data para retornar, podendo ser dias ou semanas. Como os pesquisadores não tinham comida e água para todo esse tempo, decidiram deixar a ilha.
“Deixamos todo o equipamento lá. Pegamos só a chave do carro, o celular e o documento. Só”, contou.
A volta para Itanhaém também não foi fácil, porque o barco estava agitado. Segundo ela, todo mundo ou mal. Um amigo de Karina, inclusive, sofreu com hipotermia. “Foi mar em fúria”, lembrou.
Ilha das Cobras
Muita gente pode ter ouvido falar da Ilha das Cobras pela primeira vez após o vídeo, publicado em março deste ano, de Mr. Beast, o maior youtuber do planeta. James Stephen “Jimmy” Donaldson, visitou cinco lugares que considera como os mais mortais do planeta e elegeu a Ilha da Queimada Grande como o pior deles.
Karina explicou ao Metrópoles que a ilha é chamada de Queimada Grande porque antigamente o pessoal da Marinha ateava fogo por lá. Provavelmente, as pessoas viam as jararacas e incendiavam a mata para ver se acabava com a população de serpentes. “Era gente que não sabia, não entendia e tinha medo, então ateava fogo”, contou.
Apesar de inóspita, a ilha abrigava, até 1911, um faroleiro, contratado pela Marinha, que morava lá com a família. A dinâmica era complicada porque Queimada Grande fica localizada a cerca de 30 quilômetros do continente e os barcos da época não eram tão bons. “Como se alimenta uma família dessa? Você precisa levar comida e água para eles ao menos uma vez por mês”, ponderou Karina. Por conta das dificuldades, a Marinha automatizou o farol e, desde então, ninguém mora lá.
Segundo a pesquisadora, hoje em dia, não há nem resquícios da casa onde o faroleiro morava, apenas um murinho.
Descrita como um dos cinco locais mais mortais do planeta pelo youtuber, a ilha é o único lugar onde existe a jararaca-ilhoa. O veneno da cobra pode matar uma pessoa em apenas seis horas. A outra espécie presente no local, a jararaca dormideira, não é venenosa e é muito rara de ser vista. Karina, por exemplo, nunca encontrou a cobra nas expedições à ilha.
Autorização para entrar
Quem cuida da ilha é o ICMBio e só é possível entrar lá com autorização prévia dos órgãos ambientais. Para isso, é preciso fazer um cadastro e receber uma licença. O processo é demorado e rigoroso.
“Mesmo o Instituto Butantan, que tem mais de cem anos de história lá, não adianta [se não tiver a autorização]”, disse Karina. Geralmente, é preciso submeter o projeto, eles analisam e dão, ou não, a autorização. Não é todo mundo que consegue”, explicou ela. Além disso, embarcar na ilha sem autorização é crime.