Humildade e sacrifício, conceitos que deixamos de valorizar
Queremos acreditar que somos capazes de controlar tempo e espaço. Quase nunca dá certo e, ainda assim, insistimos
atualizado
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O ser humano é um bicho frustrado. Não por natureza, mas por civilização: insistimos em ideais que não se adaptam à realidade, e isso nos leva a sofrer.
No mundo contemporâneo, tudo isso fica ainda mais nítido. Vivemos uma falácia cotidiana, chamada domínio das variáveis. Queremos acreditar que somos capazes de controlar tempo e espaço, que teremos a precisão para fazer da vida o que bem quisermos. Quase nunca dá certo e, ainda assim, insistimos.
Deveríamos, no entanto, aprender que a frustração não é apenas um mal: a partir do limite imposto, aprendemos a aprofundar nossos talentos e a explorar possibilidades em desuso. Nossos antigos consideravam e respeitavam isso. Por esse motivo, valorizavam tanto o sacrifício.
Jejum, penitência, oferenda, restrição. Esses e outros ritos de abnegação permeiam praticamente todas as intervenções religiosas, das primordiais às contemporâneas, e sempre tiveram um grande valor, seja em favor individual ou coletivo.
É a devoção reverente a um Deus Pai (a personificação sagrada do “não”). Curvar-se, ajoelhar-se, prostrar-se. Gestos repetidos nas mais diversas tradições religiosas para sinalizar o reconhecimento de quem somos diante da divindade: menores, vulneráveis, submissos, dependentes.
A interpretação de que o sacrifício aponta para a elevação da alma tem um propósito psíquico: redimensionar o tamanho do ego – muitas vezes inflacionado pelas fantasias de poder e controle – e colocá-lo novamente a serviço da nossa sabedoria inata, a qual nem sempre acatamos.
Quando abdicamos de um prazer ou um poder ao qual temos o em nome de algo mais profundo, não estamos apenas escolhendo um caminho de sofrimento. Sinalizamos à alma que estamos a ela submissos, e entregues, assim, à sua custódia.
É também uma aliança de confiança que estabelecemos com a vida. Eis o motivo de nossos ancestrais terem realizado sacrifícios inconcebíveis nos dias de hoje (o de um filho, por exemplo). A manifestação da divindade era proporcional à entrega. “O olho com que vejo Deus é o mesmo olho com que Deus me vê”, filosofa Meister Eckhart.
Como ar algo sagrado em nós se não estamos minimamente disponíveis para frustração voluntária? Como ar o mistério, a dádiva e o amor se nos mantemos fiéis ao propósito de controle dos acontecimentos? Se, com um smartphone nas mãos, acreditamos deter a regência de toda a realidade?
A dor da nossa civilização não deriva de um mundo piorado, e sim de uma humanidade com valores de realização inflacionados, com severas falhas na aceitação do não. A qual faz birra quando não desfruta, na hora e da forma desejada, daquilo que se acha merecedora. Nós ainda não entendemos a efemeridade das coisas, dos mandos, da própria vida.