Filme O Agente Secreto, de Kleber Mendonça Filho, é sucesso em Cannes
Novo filme do diretor recifense Kleber Mendonça Filho o coloca como forte concorrente à Palma de Ouro
atualizado
Compartilhar notícia

Existe um ditado estrangeiro que prega: “Você não consegue ir para casa de novo” (“You can´t go home again”, no inglês). Embora a gramática pareça um tanto incongruente, é importante que assim ressoe, para se diferenciar o tipo de retorno. A frase não está preocupada com uma volta geográfica, visto que qualquer um pode ir para um lugar aonde já morou. Trata-se de um retorno espiritual, uma indicação de que, ao sairmos de casa para ver o mundo, amos por mudanças existenciais, após as quais nunca seremos os mesmos. Nós mudamos, e a percepção do lugar do qual partimos também mudou. Em O Agente Secreto, esse lugar é a cidade do Recife, na década de 1970, para onde o diretor Kleber Mendonça Filho tenta cumprir um regresso, com a ajuda de Wagner Moura.
Em uma sequência inicial que serve de prenúncio, Marcelo (Moura) dirige seu fusca amarelo até um posto de gasolina de beira de estrada. Malcuidado e com cara de abandonado, o posto abriga ainda um cadáver, estirado na grama, coberto com papéis enquanto aguarda a remoção. Tratava-se de um meliante, relata o dono do posto para Marcelo. Quando a polícia aparece, não se preocupa com o corpo, mas sim com possíveis irregularidades no fusca e com Marcelo, a fim de assim pedirem uma “ajudinha” para o caixinha. Marcelo, entenda, está voltando para o Recife após uma temporada fora, e essa calorosa recepção deveria servir para informá-lo que nada será como antes.
A situação de Marcelo não é esclarecida de início. Primeiro, ele desembarca em um edifício com cara de república, presidido pela setentona Dona Sebastiana (Tânia Maria), em pleno fim de semana de Carnaval. Além dele, lá habitam outros “refugiados”: comunistas, estrangeiros e pessoas designadas indesejáveis pelo governo da ditadura. Depois, com muito cuidado, telefona para seu sogro, Seu Alexandre (Carlos Francisco), para combinar um eio com seu filho. O pequeno está louco para assistir ao filme Tubarão, apesar de sofrer de pesadelos desde que viu o cartaz da produção, ilustrado pelo peixe, gigantesco, ameaçando uma banhista.
Infiltrado em uma espécie de cartório, Marcelo a os dias tentando recuperar algum documento da finada mãe, enquanto espera a entrega de novos documentos pessoais para si e para o filho. O plano é fugir novamente, só que, desta vez, com o filho. Serão dias tensos entre a nostalgia e a ameaça. Em outro núcleo, dois matadores de aluguel, Augusto (Roney Villela) e Bobbi (Gabriel Leone), estão em seu encalço. Nenhuma das informações aqui expostas, apresentadas nos primeiros minutos do filme, atrapalha o prazer sentido enquanto tudo se desenrola.
Se Marcelo está em uma missão que incorpora o retorno ao lar, fica evidente no filme que o diretor também compartilha desse objetivo. Soa estranho dizer que o filme a que O Agente Secreto mais remete é o documentário Retratos Fantasmas, e não uma das outras ficções de Kleber Mendonça Filho. Se ali um dos personagens-chave era o projetista da sala de cinema Art Palácio, aqui ele é ficcionalizado pelo homônimo, o sogro de Marcelo, que trabalha como projecionista com a mesma camisa aberta e o mesmo andar manco. Além disso, uma série de subplots faz referência à cultura recifense, desde a divertida menção à lenda da Perna Cabeluda, ao amargo episódio da morte de uma criança que estaria sob cuidados da patroa. Udo Kier subverte a tradicional narrativa de imigração alemã à América do Sul em uma cena impactante e um tubarão faz uma bela ponta logo no início.
O regresso de Marcelo gera um perigo permanente, já o de Kleber se torna a parte mais preciosa do filme. Ignorando a objetividade de thrillers norte-americanos, este filme, mais que brasileiro, recifense, deleita-se em apresentar ao mundo uma cidade exuberante, inserida num ado cheio de complicações e resistência. Fotografado pela russa Evgenia Alexandrova, O Agente Secreto tem cores e texturas que depõem contra o tema do apagamento causado tanto pela ditadura militar que reinava à época quanto ao capitalismo moderno, que transformou cinemas de rua em igrejas e farmácias.
Se o universo criado por Kleber Mendonça Filho tem algum defeito, é o pouco tempo dedicado a seus personagens coadjuvantes, cuja construção é, sem dúvidas, a especialidade do diretor.
Ao conduzir seus personagens e seus espectadores a esse lugar e a momentos tão especiais, o diretor está mais perto do que nunca de conquistar a sonhada Palma de Ouro.
Avaliação: Excelente (4 estrelas)