Cannes: Retratos Fantasmas, de Kleber Mendonça Filho
Memórias do ex-crítico revelam que ele sempre fora cineasta.
atualizado
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É sempre arriscado para um cineasta fazer um documentário que incorpora a própria vida, pois convida assim interpretações do estilo ´psicologia-pop´ por parte de seus fãs e de seus detratores. O novo filme de Kleber Mendonça Filho, o diretor brasileiro mais celebrado internacionalmente da atualidade, é descrito como um documentário sobre os cinemas de rua da cidade de Recife. Só que estes aparecem somente a partir do segundo “capítulo” de “Retratos Fantasmas”. O primeiro é todo ocupado com o apartamento que Kleber habitou por grande parte da vida, incorporado como cenário em sua filmografia, desde os filmes do período estudantil, e do qual está prestes a se mudar para sempre.
O filme também incorpora Kleber como personagem pela primeira vez, pelo menos na sua filmografia disponível comercialmente. Narrando as imagens e o material de acervo, assim como sequencias rodadas especificamente para o doc, seu tom não revela suas emoções, mas providencia humor e a certeza de seu investimento pessoal na história. Nico, o cão do vizinho cujos latidos incessantes foram incorporados ao filme “O Som ao Redor” reaparece no tempo presente, apesar de sua morte há anos. Assombrado pelos latidos fantasmas, Kleber descobre que era um vizinho assistindo ao filme em sua televisão. Mais delicadas são as informações sobre sua mãe, morta por câncer aos 45 anos, mas cujo espectro revela clara inspiração para a personagem de Sônia Braga em “Aquarius”.
Após o diretor constatar que mudará de endereço, o filme vira a atenção para os cinemas de rua das nossas infâncias. Ou pelo menos da infância de quem já tem mais de 40 anos. A realidade atual está lentamente acabando com essa cultura de rebuscados “palácios” da sétima arte, em troca de multiplexes dentro de shoppings e streaming dentro de casa. É uma (d)evolução mundial, não só de Recife, ou mesmo do Brasil. Durante a adolescência, Mendonça teve a sorte de conhecer alguns daqueles que trabalhavam em tais salas, com destaque para o projecionista Alexandre.
O que faz o documentário transcender de uma simples elegia, de alguém simplesmente reclamando de que as coisas não são mais como eram antigamente é justamente a incorporação de Kleber e de seu ex-apartamento nesta trama. Fica impossível para o narrador lamentar a perda do ado de uma forma simples, já que ele está prestes a abandonar sua própria moradia, literalmente cinematográfica. A vida do apartamento, para ele, serve como metáfora para a vida do cinema de rua: chegou a hora de aceitar que as coisas mudaram, mas não em um tom desesperador, apenas realista.
Avaliação: Ótimo (4 estrelas)