“Nunca vi”, diz vizinha de onde funcionava joalheria de espião russo
Metrópoles conversou com vizinhos da loja e recepcionista de prédio comercial que não reconheceram a joalheria usada como fachada pelo russo
atualizado
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A joalheria que um espião russo usava para se disfarçar de empresário brasileiro era um empreendimento de fachada. Vizinhos da loja, recepcionistas do prédio comercial e secretária do locatário do imóvel nem sequer sabiam que o estabelecimento ao lado abrigava pedras preciosas, como anéis de esmeralda cravejada de diamantes e brincos de turmalina paraíba com ouro branco.
“Nunca vi”, disse uma funcionária da clínica de dermatologia no corredor da loja alugada. Ela trabalha há oito anos no local. “Nem sabia que tinha uma joalheria aqui, mas, pelo endereço, é mesmo essa sala.” A jovem citou a localização que consta no perfil da Esfel Jewelry. Até o início deste ano, o espaço estava alugado para um partido político.
“Teve um tempo que era uma moça que vinha aqui, mas ficava sempre fechado. Aqui a gente percebe só quando tem a movimentação de móveis”, pontuou.
No Brasil, Aleksandr Andreyevich Utekhin se apresentava como Eric Fauchere Lopes, empresário e gemólogo (especialista em pedras preciosas). O Metrópoles foi ao local que indicava ser a empresa dele e viu a sala 702 do Edifício América Office Tower, no Setor Comercial Norte. Como a porta estava aberta, conseguiu filmar as disposições do ambiente. Assista:
Onze anos trabalhando no prédio comercial, a recepcionista do edifício também não reconheceu a loja. “Nesse tempo todo, você é a primeira pessoa que aparece para mim aqui perguntando dessa loja”, disse. Ela chegou a consultar no sistema se a empresa só está na sala errada, mas realmente não localizou.
O CNPJ da empresa segue ativo, mas a empresa não estaria em funcionamento há pelo menos dois anos. A página da Esfel nas redes sociais conta com 31 mil seguidores, 237 publicações e garantia de entrega em todo o Brasil. A loja funcionava com atendimento intimista e agenda marcada, para que os compradores pudessem tocar e provar as peças.
Veja fotos das joias:
A reportagem também conversou com a secretária do dono do imóvel em que funcionava a joalheria de fachada. Ela disse que cuida de alguns contratos do responsável, mas não se recorda de ser uma joalheria.
Espião russo
Lopes se identificava como brasileiro com um “português gringo”. A história foi revelada na quarta-feira (21/5), em reportagem do The New York Times que mostrou o Brasil como uma fábrica de espiões russos. Por ter um aporte aceito na maioria dos países e uma grande variedade étnica, o Brasil ou a ser um paraíso para disfarçar as identidades dos agentes secretos e dar a eles uma nacionalidade mais ível para as missões.
O artigo cita duas lojas de Utekhin no Brasil, uma em Brasília e outra em São Paulo. Na capital paulista, o espião também tinha um endereço registrado na rua Conselheiro Ramalho, no bairro Bela Vista.
Pelos documentos apresentados por Utekhin, ele se dizia filho de Annie Fauchere e Paulo Manuel Pinto da Silva Lopes. Não se sabe se essas pessoas de fato existiram. O sobrenome Fauchere é muito comum na França, que, curiosamente, seria o segundo nome da mãe do falso Lopes.
Para reforçar o disfarce, Utekhin até pagou para que divulgassem a empresa dele no canal Empresários de Sucesso TV, que se define no YouTube como “o maior programa de empreendedorismo do Brasil”.
Na gravação, publicada em 24 de abril de 2023, o nome “Eric” é dito três vezes em 2 minutos e 33 segundos de duração. Ele não concedeu entrevista – uma funcionária foi quem falou para as câmeras. A única imagem de Eric é a divulgada pelo The New York Times, à qual a reportagem teve o a partir de uma apuração internacional envolvendo a Polícia Federal e a CIA. Os investigadores do caso acreditam que a empresa servia como fachada para reforçar as credenciais brasileiras do russo.
Entenda o que aconteceu
- O Brasil virou um local de treinamento e construção de identidades falsas por espiões russos como forma de viabilizar a realização de serviços de espionagem mais avançados em outros países e regiões, como Estados Unidos, Europa e Oriente Médio, segundo revelou reportagem do jornal norte-americano The New York Times (NYT).
- Segundo o NYT, a Polícia Federal brasileira estava atenta aos espiões e montou a Operação Leste para tentar desmantelar o esquema. O jornal mostrou que os espiões chegavam ao Brasil e buscavam nova identidade para construir uma vida normal e impossível de ser reconhecida.
- A matéria cita o caso de Artem Shmyrev, que tinha uma empresa de impressão 3D e dividia um apartamento de luxo com a namorada no Rio de Janeiro. Ele tinha um nome brasileiro – Gerhard Daniel Campos Wittich – e se apresentava como um cidadão local, de 34 anos.
- Além desse caso, uma espiã russa dizia que era modelo brasileira, e um agente secreto se ando por estudante conseguiu uma bolsa de estudo em Harvard, além de se inscrever em um projeto na Holanda, que estudaria os crimes de guerra na Ucrânia.
- O jornal aponta que a investigação da PF desferiu um golpe devastador no programa de imigração ilegal de Moscou, pois eliminou um quadro de policiais russos altamente treinados que será difícil de substituir.
- Até agora, os investigadores localizaram nove policiais russos com identidade brasileira.
- Desses, dois foram presos, alguns retornaram para a Rússia e outros, já descobertos, podem não conseguir mais deixar o país nem atuar no exterior.
- Seis nomes foram identificados publicamente até agora. A investigação teve envolvimento de pelo menos oito países, segundo o NYT.
- A mesma unidade de agentes de contrainteligência da Polícia Federal que fez o monitoramento dos espiões russos foi responsável pela investigação da tentativa de golpe que o ex-presidente Jair Bolsonaro e aliados respondem no Supremo Tribunal Federal, aponta o jornal.
Segundo as informações do jornal norte-americano, Utekhin ou um período no Oriente Médio. O paradeiro dele é desconhecido, mas a suspeita é que ele tenha retornado à Rússia.
A loja no DF chegou a ser alvo de operação da Polícia Federal, mas os agentes não encontraram nenhum sinal de Utekhin, nem do ouro ou das pedras preciosas que ele anunciava no Instagram.
O Metrópoles apurou que o CNPJ da loja continua ativo, mas a última publicação nas redes sociais foi feita em maio de 2022.
O endereço da loja do russo na Avenida Paulista, na capital de São Paulo, também foi desativado. O local onde o espião russo se disfarçou fica em frente a um batalhão da Polícia Militar e hoje é ocupado por uma imobiliária, segundo o jornal.
A reportagem tentou contato com o estabelecimento, mas não teve reposta.