“Ela me batia porque eu a chamava de mãe”, diz menina torturada em SP
Justiça paulista condena mãe a 48 anos de prisão e padrasto, a 33, por tortura e escravização de M. J., de 10 anos
atualizado
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A sala da juíza Tatiane Moreira Lima, na Vara de Violência Doméstica do Butantã, na zona oeste de São Paulo, se transforma em uma pequena brinquedoteca, com direito a bexigas penduradas no teto e outros apetrechos. No colo da magistrada está M. J., de 10 anos, que tem no corpo as marcas das inúmeras agressões que sofreu. Por quatro anos seguidos, foi espancada e torturada pela própria mãe e pelo padrasto.
Os castigos impostos a ela “por não deixar a casa limpinha” foram classificados pela juíza como brutais e incluíam, entre outras atrocidades, cortar a língua da menina e outras partes do corpo, inclusive o órgão genital, com alicate.
A título de comparação, o casal Alexandre Nardoni e Ana Carolina Jatobá, pai e madrasta da menina Isabela, que morreu em 2008 após ser jogada do sexto andar de um prédio, foram condenados, respectivamente, a 31 e 26 anos de prisão. Vanessa e Santos vão cumprir a sentença em regime fechado. O casal está preso desde agosto do ano ado, quando o caso foi descoberto.
Na ocasião, a menina fugiu de casa e o Conselho Tutelar da Lapa, na zona oeste, apresentou denúncia à Polícia Civil. A reportagem acompanha as investigações desde o início e esteve na audiência de M. J.
A magistrada precisou de pouco mais de cinco minutos para conquistar a confiança da menina e fazer com que ela contasse detalhes do que ou. “A tia vai te dizer uma coisa: esta é a última vez que você vai falar sobre isso com alguém. Nunca mais você vai precisar relembrar essas coisas ruins que ou. Só se você quiser, tudo bem">
Ela respondeu às perguntas da juíza com riqueza de detalhes. Segundo M. J., as agressões começaram aos 6 anos e pioraram nos últimos dois. O motivo era sempre o mesmo: desaprovação em relação ao trabalho doméstico. A mãe trabalhava à noite como recepcionista de boate e dormia durante o dia, e o padrasto era jardineiro em horário comercial.
A garota era, conforme denúncia do Ministério Público Estadual (MPE), “a encarregada” de limpar a casa, preparar comida e vestir os irmãos menores para a escola E apanhava quando o casal não ficava satisfeito.
“Você apanhava muitas vezes por semana?”, perguntou a juíza. “Apanhava todo dia, tia”, respondeu a menina. Ela narrou que era obrigada a dormir em pé quando “a louça não ficava limpa”. A mãe, disse a menina, amarrava os seus braços e suas pernas de modo que ela não conseguia se mexer. Outra vezes, dormia no chão e até fora de casa, onde chegou a presenciar ratos ando ao redor. Por várias vezes, ficou sem refeição.
O depoimento de M. J. à juíza durou pouco mais de uma hora. Quase no final, a garota contou que Vanessa não gostava que ela a chamasse de mãe. E que apanhava quando isso acontecia. “A minha mãe me batia porque eu chamava (ela) de mãe. Mas eu não sabia chamar de outra coisa. Ia chamar do que, tia?”, afirmou M J. O fato emocionou todos os presentes na audiência.
A menina contou que em um certo dia não conseguiu colocar a capa no sofá e foi segurada pelo padrasto enquanto a mãe lhe arrancava três unhas da mão com um alicate de jardineiro. Na sequência, Vanessa furou a sola do pé da filha com a ferramenta. E a tortura continuou. Segundo depoimento, a mãe a amarrou com um fio e apertou com o alicate sua barriga várias vezes, causando ferimentos. Por último, os dois – segundo o MPE — se revezaram apertando o alicate na vagina de M.J.
Em outra ocasião, por achar que a filha havia deixado “areia na cama”, Vanessa cortou a língua da menina com alicate e costurou com uma agulha. Em seguida, M.J. foi obrigada a limpar o sangue que espirrara na parede.
“Desumanização”Em um dos trechos da sentença de 20 páginas, a magistrada afirmou que “casos como o presente mostram a verdadeira desumanização de dois seres, que se despem dos papéis de guardiões para encarnar os papéis de déspotas e tiranos, senhores da vida e da morte, da dor e do pavor de uma pobre criança indefesa. Diante do exposto, a condenação se mostra medida inafastável”.
Segundo a promotora Ana Paola Ferrari Ambra, além dos depoimentos, os laudos periciais atestam a veracidade dos fatos contados por M.J. “Em 15 anos de promotoria nunca havia acompanhado um caso tão cruel como este. O que mais machucou foi o fato de a filha apanhar porque chamava a mãe de mãe”. Ana Paola não vai recorrer da sentença.
No processo, Vanessa e Santos negaram as acusações e alegaram inocência. Porém, um responsabilizou o outro por agressão a menina enquanto um deles estava trabalhando. Os advogados de defesa, Luis Cláudio Okono e Carolina Fernandes Ramos, vão recorrer da pena.
Nesta terça-feira, M.J. vai dar um o importante para arrancar as marcas que ficaram das sessões de tortura que sofreu Por causa das agressões com alicate, a menina tem queloides espalhadas pelo corpo. Após consultas com vários especialistas, a intervenção cirúrgica mostrou-se a melhor alternativa para eliminá-las.
Desde que saiu do hospital em agosto de 2016, M.J. e os irmãos, de 6 anos e 4 anos, foram encaminhados para um abrigo na Lapa, na zona oeste de São Paulo. O local é assistido pela Organização Não Governamental (ONG) Ciranda para o Amanhã, que ajuda 19 abrigos na região oeste da cidade e atende 350 crianças. A menina acabou “adotada” pelo grupo.
A ONG começou em dezembro de 2015 com um grupo de nove mães cujos filhos são alunos de uma mesma escola particular, na região da Lapa. O grupo cresceu e hoje conta com 600 voluntárias
“A M.J. nos conquistou pela sua doçura. Ela tinha tudo para ser uma criança triste, amarga, mas é exatamente o oposto”, contou Paula Martinez, uma das fundadoras da ONG. Uma amiga, diz ela, havia contado o caso de M.J. e pediu ajuda para a ONG com o objetivo de acolher a menina.
Paula conta que um dos hábitos que a menina perdeu foi o de limpar o quarto. “As assistentes sociais nos contaram que no primeiro dia ela levantou cedo, pegou a vassoura e foi varrendo o chão. Depois que foi explicado que ela não precisava fazer mais aquilo, ela contou que estava acostumada a viver assim. Muito triste”, lembrou.
A simpatia e o carinho de M.J. fez com que os voluntários fizessem mais do que habitualmente costumam fazer. A menina ou a ser levada a eios nos finais de semana com as diretoras. “Hoje há uma espécie de rodízio para quem vai ficar com ela”, contou Paula.
As “tias” costumam levá-la para o cinema, shopping, parques de diversões e até para ar “um dia de princesa” em um salão de beleza. Os irmãos mais novos também acompanham a garota em algumas ocasiões.
Cuidados
Desde que chegou no abrigo, a garota ou por consultas médicas e odontológicas. Atualmente, está em tratamentos dentário, dermatológico e também psicológico. Tudo isso foi possível, de acordo com Paula, porque os médicos e demais profissionais se sensibilizaram com o caso e decidiram ajudá-la de diferentes maneira.
Além das queloides, M.J. tem outras marcas de ferimentos por todo o corpo. “As manchas diminuíram bastante, mas as queloides aumentaram com o decorrer do tempo. Apenas com cirurgia será possível diminuí-las. É um trauma que ela tem, porque traz de volta, tudo o que já ou”, afirmou Paula.
De acordo com Isabella, o início do tratamento psicológico revelou vários traumas. M.J. não conseguia, por exemplo, dormir direito. “Ela dizia que fechava os olhos e ouvia risadas da mãe afirmando que a menina iria apanhar todos os dias. E acreditava que praga de mãe pegava. Foi difícil para ela parar de pensar nessas coisas.”
Futuro
A Justiça ainda vai definir com quem a menina e os irmãos vão ficar. Caso nenhum parente tenha condições de recebê-los, diz a ONG, há a possibilidade de encaminhamento para adoção. Não há prazo para a decisão. Enquanto isso, a menina segue encantando a todos. “Tia, eu amo vocês”, é o que ela costuma dizer.