Cotas no CNU: MPF quer ação judicial para candidatos negros excluídos
Falhas na heteroidentificação do CNU tiraram o direito de ao menos 145 candidatos negros às cotas, aponta o MPF
atualizado
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O Ministério Público Federal (MPF), por meio da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC), solicitou ao procurador regional dos Direitos do Cidadão no Distrito Federal a adoção de medidas judiciais para garantir uma nova avaliação de heteroidentificação a candidatos negros excluídos de forma irregular do sistema de cotas raciais no Concurso Nacional Unificado (CNU).
Documentos obtidos pelo Metrópoles revelam que o MPF identificou falhas graves no procedimento de heteroidentificação, traçando um cenário alarmante de exclusões sem critério claro, violação de direitos e desrespeito à política de cotas no serviço público.
O caso se agravou após a reportagem expor a existência de uma denúncia segundo a qual um membro da cúpula do Ministério da Gestão e Inovação (MGI) teria orientado as bancas de heteroidentificação a excluir, de forma deliberada, candidatos negros não retintos — o que fere a Lei de Cotas. À época, o Ministério da Gestão e da Inovação (MGI), responsável pelo certame, negou a acusação.
Apesar disso, segundo o MPF, as irregularidades constatadas vão além de falhas pontuais. Para o órgão, houve violação do devido processo legal, enfraquecimento da política de ações afirmativas e prejuízos concretos a, pelo menos, 145 candidatos que teriam direito à vaga, mas foram indevidamente excluídos.
O que motivou o pedido de ação judicial
Em janeiro deste ano, o MPF havia recomendado a suspensão dos resultados finais do CNU, diante de indícios de violações legais. A recomendação, enviada à Cesgranrio e ao Ministério da Gestão e da Inovação (MGI), não foi acatada.
A investigação conduzida pela PFDC identificou, com base em dados do MGI, ao menos 145 candidatos negros que teriam sido aprovados nas vagas imediatas ou em cadastro de reserva, mas que foram excluídos do sistema de cotas com base em decisões não motivadas das comissões de heteroidentificação.
O documento ao qual o Portal teve o afirma, ainda, que dados fornecidos pelo MGI reforçam a plausibilidade de que a exclusão desses candidatos foi indevida, especialmente porque a exclusão comprometeu o direito à classificação.
A medida judicial indicada pelo MPF busca reprocessar as avaliações de heteroidentificação para os 145 candidatos excluídos sem justificativa — garantindo critérios claros, imparcialidade e respeito à legislação vigente.
Falhas identificadas no procedimento de heteroidentificação do CNU
- Exclusão das cotas sem explicação objetiva: as bancas de heteroidentificação do CNU utilizaram a expressão genérica “não enquadrado” para desclassificar candidatos negros, sem apresentar critérios ou justificativas objetivas que motivaram a exclusão.
- Impedimento à defesa dos candidatos: os desclassificados não puderam ar o parecer da banca, nem apresentar documentos ou argumentos no sistema de recurso — o que fere o direito ao contraditório e à ampla defesa.
- Falta de transparência na escolha dos avaliadores: os nomes e currículos dos integrantes das comissões só foram divulgados tardiamente, impedindo que candidatos identificassem possíveis conflitos de interesse ou questionassem a imparcialidade das bancas de heteroidentificação.
- Critérios inconsistentes entre comissões: a ausência de um padrão para avaliar os traços fenotípicos resultou em decisões arbitrárias e contraditórias entre bancas diferentes.
- Violação de princípios constitucionais: as falhas identificadas afrontam os princípios da legalidade, isonomia, publicidade, motivação e eficiência, previstos no artigo 37 da Constituição Federal e na Lei nº 9.784/1999.
Em setembro ado, o Metrópoles ouviu candidatos que tiveram a solicitação de cotas raciais negadas pela banca Cesgranrio, escolhida pelo MGI para realizar o certame. Dentre eles, pessoas que haviam sido enquadradas no sistema de cotas em concursos anteriores, inclusive promovidos pela mesma banca.
A reportagem trouxe à tona relatos de procedimentos impessoais, avaliações-relâmpago e bancas compostas majoritariamente por pessoas brancas. Todo o procedimento chegou a ser definido como traumático.
O que é heteroidentificação
De acordo com o documento “Protocolo para Julgamento com Perspectiva Racial” do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), a heteroidentificação é um dos métodos usados para definir o pertencimento de indivíduos a grupos raciais. A identificação da raça, para fins de políticas públicas, deve se basear na raça social, ou seja, como as pessoas são vistas e tratadas na sociedade.
Objetivos da heteroidentificação:
- Assegurar que as políticas de ação afirmativa alcancem aqueles que são socialmente reconhecidos como negros e pardos e sofrem discriminação.
- Validar a autodeclaração de um indivíduo.
- Replicar o olhar da sociedade para identificar se um candidato que se autodeclarou negro é socialmente visto como tal.
E os pardos?
Segundo o Protocolo para Julgamento com Perspectiva Racial, para aqueles que se autodeclaram pardos, deve ser analisado se o candidato é potencialmente vítima de preconceito no cotidiano e se é visto socialmente como negro.
“Em alguns casos, é recomendável que o(a) magistrado(a) convoque o candidato para uma entrevista pessoal ou por videoconferência para uma análise mais precisa, pois o documento oficial ou foto digitalizada podem dificultar a análise fenotípica”, descreve o documento. “[…] O(a) magistrado(a) eleitoral deve analisar se o candidato autodeclarado pardo encontraria resistência para ser contratado por uma empresa devido à sua tonalidade de pele e se receberia tratamento diferenciado em eventos sociais ou corporativos devido à sua condição de afrodescendente”.