A partir da decisão proferida em 5 de abril, a mulher trans fica protegida pelos dispositivos da lei – que agrava punições para violência de gênero –, sem contar condição biológica ou cirurgia de redesignação sexual.
De acordo com dados do Dossiê Assassinatos e Violências Contra Travestis e Transexuais Brasileiras, em 2021 o país registrou 140 assassinatos de pessoas trans. Entre as vítimas, constam 135 travestis e mulheres transexuais, e cinco homens trans.
Agora, com o entendimento inédito do STJ, as mulheres trans am a ter mais uma proteção. A 6ª Turma deu provimento a um recurso especial para fixar medidas protetivas a uma mulher transexual. A alegação foi de que a requerente era vítima de agressões do próprio pai.
No caso em questão, o pai da autora da ação, usuário de drogas e álcool, agrediu a filha com um pedaço de pau. Ela foi perseguida pela rua até encontrar uma viatura da Polícia Militar.
Instâncias ordinárias por todo o país já tinham entendimento de beneficiar mulheres trans com a lei. No entanto, essa não era uma decisão unificada. Tanto que o recurso que chegou ao STJ tratava da negativa de medidas protetivas a uma mulher trans pelo Tribunal de Justiça de São Paulo.
O Ministério Público de São Paulo recorreu, defendendo que a Lei Maria da Penha protege a mulher contra qualquer espécie de violência fundada no gênero, e não apenas no sexo biológico.
O ministro Rogerio Schietti, relator do caso, afirmou em seu voto: “A Lei Maria da Penha nada mais objetiva do que proteger vítimas em situação como a da ofendida destes autos. Os abusos por ela sofridos aconteceram no ambiente familiar e doméstico, e decorreram da distorção sobre a relação oriunda do pátrio poder, em que se pressupõe intimidade e afeto, além do fator essencial de ela ser mulher”.
Assim, os tribunais de primeira instância agora têm jurisprudência para votar no mesmo sentido.
Maria da Penha: entenda a lei que combate a violência contra a mulher
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O nome da lei homenageia Maria da Penha, mulher que sofreu tentativa de feminicídio, em 1983, que a deixou paraplégica. O caso ganhou repercussão internacional e foi denunciado à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA)
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À época, a OEA responsabilizou o Brasil e o acusou de omissão e tolerância em relação à violência doméstica praticada contra as mulheres. Além disso, a entidade recomendou que o governo não só punisse o agressor de Maria, como prosseguisse com uma reforma para evitar que casos como esse voltassem a ocorrer
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Em 2002, diante da negligência do Estado, ONGs feministas elaboraram a primeira versão de uma lei de combate à violência doméstica contra a mulher. Somente em 2006, no entanto, a Câmara e o Senado discutiram sobre o caso e aprovaram o texto sobre o crime
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Em 7 de agosto de 2006, a Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006) foi sancionada pelo então presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Com 46 artigos distribuídos em sete títulos, a legislação visa coibir a violência doméstica contra a mulher, em conformidade com a Constituição Federal
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A lei entrou em vigor no dia 22 de setembro de 2006, e o primeiro caso de prisão com base nas novas normas foi a de um homem que tentou estrangular a esposa, no Rio de Janeiro
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A Lei Maria da Penha altera o Código Penal e determina que agressores de mulheres não possam mais ser punidos com penas alternativas, como era usual. O dispositivo legal aumenta o tempo máximo de detenção, de 1 para 3 anos, e estabelece ainda medidas, como a proibição da proximidade com a mulher agredida e os filhos
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No entanto, foi somente em 2012 que o Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu a constitucionalidade dessa lei
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Bater em alguém é crime no Brasil desde 1940. Contudo, a Lei Maria da Penha foi criada para olhar com mais rigor para casos que têm mulheres como vítima, na esfera afetiva, familiar e doméstica
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Em outras palavras, a aplicação da Lei Maria da Penha acontece dentro do conceito de vínculo afetivo. O(a) agressor(a) não necessariamente precisa ter relação amorosa com a vítima, já que a lei também se aplica a sogro, sogra, padrasto, madrasta, cunhado, cunhada, filho, filha ou agregados, desde que a vítima seja mulher
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Além disso, não importa se o agressor deixou ou não marcas físicas; um tapa ou até mesmo um beliscão é suficiente para que a ocorrência seja registrada
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Segundo o advogado Newton Valeriano, “não é necessário ter testemunhas”. “Esse tipo de violência ocorre, principalmente, quando não há pessoas por perto. Portanto, a palavra da vítima é o que vale para começar uma investigação. Além disso, o boletim de ocorrência e a medida protetiva não podem ser negados”, disse o especialista
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Apesar do que muitos pensam, a agressão física contra a mulher não é o único tipo de violência que se enquadra na legislação. O artigo 7º da Lei Maria da Penha enumera os crimes tipificados pela norma: violência psicológica, sexual, patrimonial ou moral
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Caracteriza-se como violência psicológica qualquer conduta que cause dano emocional e que vise controlar decisões. Além disso, ameaças, constrangimento, humilhação, chantagem, limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação
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Caracteriza-se como violência sexual qualquer conduta: que constranja a mulher a presenciar ou participar de relações sexuais não desejadas; que a induza a usar a sexualidade; que a impeça de utilizar contraceptivos; que force uma gravidez ou um aborto; e que limite ou anule o exercício de direitos sexuais e reprodutivos
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Já a violência patrimonial é entendida como qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores, direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer necessidades
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Violência moral é considerada qualquer conduta que configure calúnia, difamação ou injúria
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Há alguns anos, debates sobre a inclusão de mulheres transexuais na Lei Maria da Penha influenciaram decisões judiciais que garantiram medidas protetivas a elas. Sentenças dos Tribunais de Justiça do Distrito Federal, de Santa Catarina e de Anápolis abriram precedentes para a discussão
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Apesar disso, nas vezes em que foram incluídas, as mulheres trans precisavam ter ado pela cirurgia de redesignação ou alterado o registro civil
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No início de abril de 2022, no entanto, o STJ concedeu, por unanimidade, medidas protetivas por meio da Lei Maria da Penha para uma mulher transexual. Por ser a primeira vez que uma decisão nesse sentido foi tomada por um tribunal superior, a determinação poderá servir de base para que outros processos na Justiça utilizem o mesmo entendimento
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Direitos
A partir de agora, todas as condições garantidas às mulheres cisgênero também valem para as mulheres trans. “Ela vai ter o à rede de proteção, a mecanismos e a institutos que ampliam a assistência à mulher que sofre algum tipo de violência. Ela será atendida em juizados especiais e delegacias preparadas para receber mulheres nessa situação”, ressaltou a advogada e membro do Comitê de Diversidade da SiqueiraCastro, Livia Fabbro Machado.
Para Andrea Costa, advogada criminalista sócia do Loureiro, Costa e Sousa Advogados, a decisão do STJ é extremamente importante e representa uma evolução na proteção das mulheres trans.
Anteriormente, em alguns casos de violência contra mulheres trans, a Lei Maria da Penha era aplicada, desde que comprovada a mudança de sexo biológico. Ou seja, era necessário ter ado pela cirurgia de redesignação sexual.
Determinados tribunais dispensavam a exigência e já aplicavam a Lei Maria da Penha para mulheres trans que ainda não tinham ado por essa transição.
“A forma com que o STJ abordou o caso, e com que o CNJ tem se manifestado, trouxe como conceito sobre mulher trans a necessária identificação de gênero. Ou seja, não sendo exigida a cirurgia. Até porque a Lei Maria da Penha é uma lei que protege a mulher enquanto gênero, não enquanto questão biológica”, ressalta a defensora, na mesma linha do ministro relator no STJ.
Para Andrea Costa, o número de feminicídios no país comprova que essa proteção é necessária.
Recomendação para mudança de postura
A subprocuradora-geral da República Raquel Dodge, em sua manifestação, recomendou que o STJ utilizasse como referência o protocolo para julgamento com perspectiva de gênero aprovado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
Em outubro de 2021, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) lançou um Protocolo de Julgamento com Perspectiva de Gênero. O documento cria uma lente sobre a análise de casos que envolvam mulheres, a fim de alcançar a equidade nos julgamentos.
A iniciativa visa construir parâmetros para o melhor tratamento das usuárias do sistema de Justiça.