HÁ VINTE ANOS – Boas e más lembranças da Semana Santa
Das procissões ao feijão de coco com bolinho de bacalhau
atualizado
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Tem alguém aqui com idade suficiente para ter assistido Marcelino, Pão e Vinho, do diretor húngaro Ladislao Vadja? E com memória para recordar o enredo do filme? Eu recordo da primeira à última cena.
Rodado na Espanha e lançado em 1954, conta a história de uma criança abandonada na porta de um convento e criada por 12 frades.
Um dia, Marcelino oferece pão e vinho a uma gigantesca imagem de Jesus crucificado. E aí se dá o milagre: Jesus ganha vida, aceita a oferta e começa a conversar com o menino. Até desprende uma das mãos para afagá-lo.
Eu tinha menos de 10 anos quando assisti ao filme no Recife. E fiquei paralisado de medo.
Havia uma imagem semelhante àquela na capela do Hospital Português onde eu costumava ir à missa levado por tia Zezinha. Ela queria que eu fosse padre. Eu dizia que seria padre.
E se o Jesus crucificado do Hospital Português um dia falasse comigo? E se ele tentasse ar a mão na minha cabeça? Na dúvida, depois do filme jamais encarei o Jesus da capela do hospital.
Outro dia, aproveitei uma agem por Recife e fui vê-lo. Está no mesmo lugar. Mas ainda me mete um pouco de medo.
Tem um outro Jesus que não faço a menor questão de rever. É grande como o do filme e o da capela do hospital. Mas é muito mais apavorante.
Saía duas vezes em menos de uma semana pelas ruas do centro do Recife. Carregava uma cruz pesada. Vestia um hábito roxo. Sangrava abundantemente. E tinha cabelos de verdade – uma peruca, renovada de tempos em tempos.
Alguns dias antes da Semana Santa, saía da Concatedral da Madre de Deus para a Matriz de Santo Antônio. No meio do caminho se encontrava com Nossa Senhora.
Na Sexta-Feira da Paixão, fazia o caminho de volta acompanhado por uma multidão em silêncio. Ouvia- se apenas o som da matraca.
A única boa lembrança que tenho da Semana Santa é o feijão-de-coco com bolinho de bacalhau servido por minha avó, Doralice. Minha mãe aprendeu a fazer com ela – e minha mulher com minha mãe. Comi hoje, comerei amanhã e depois de amanhã.
Prometo que farei jejum a partir da próxima segunda-feira.
(Publicado aqui em 26 de março de 2005)