O jogo do Lula e o Jogo da Lula (Por Fernanda Hamann)
Uma coisa nada tem a ver com a outra
atualizado
Compartilhar notícia

Dia desses, eu confessava a um conterrâneo o meu horror por essa recente naturalização do nazismo nos Estados Unidos, na Alemanha e no Brasil. (Sim, no Brasil também. Basta lembrar de Roberto Alvim, secretário de Cultura de Jair Bolsonaro, que fez um discurso imitando o Goebbels.) Foi aí que o meu interlocutor respondeu: “Mas o Lula também não ajuda, né?” E eu: “Como assim?” E ele: “O Lula, fazendo esse jogo…” E eu: “Que jogo?” E ele: “Ah, esse jogo do Lula.”
A resposta me soou tão absurda que pensei que ele estava a falar do Jogo da Lula. A série coreana da Netflix é mesmo emblemática desse neonazismo à la Musk, Trump & companhia. Ela ilustra uma lógica não só supremacista, mas hipernarcisista e hipercapitalista. No jogo de vida ou morte do Squid Game, o traço narcisista aparece na nostalgia da infância, no apelo macabro à rivalidade implícita nas brincadeiras de criança. Quanto ao traço capitalista, o objetivo do jogo é claro: acumular o máximo de capital, mesmo que, para isso, todos os outros jogadores tenham de morrer.
Acho uma pena comentar a série tão brevemente, no espaço limitado deste texto, porque ela merece uma tese de doutoramento em antropologia ou psicanálise. Mas gostaria de, no mínimo, ressaltar a maestria com que ela mostra como as soluções coletivas são logo engolidas pela ganância egocêntrica, que não se constrange se a condição para ganhar dinheiro for a aniquilação do outro. É o triunfo do individualismo como modo de existência social, em detrimento de qualquer possibilidade de articulação política.
A segunda temporada aborda, inclusive, a crise de estratégias tradicionais como as greves e os debates eleitorais. A cooperação, a empatia, qualquer gesto ou afeto no sentido da humanização dos personagens parece uma ilha de resistência inútil num maremoto de barbárie. Não é por acaso que as cenas são tão violentas, às vezes caricatas, ou até repulsivas. O capitalismo pós-industrial também não é nada sutil.
Gostemos ou não do atual presidente do Brasil, o fato é que o jogo do Lula é muito distinto do Jogo da Lula. Um é a antítese do outro.
O jogo do Lula é o jogo político. É a tentativa de dialogar com o outro, de ar o contraditório, de aceitar a diferença e fazer acordos, perdendo aqui para ganhar ali. Quando a outra parte na mesa de negociação são os parlamentares fisiológicos do Congresso, essa inclinação ao acordo pode nos parecer difícil de tolerar. Quando são militares que minimizam crimes cometidos durante a ditadura, o acordo chega a ser revoltante.
Ainda assim, mesmo sujeito a críticas, o jogo do Lula é o jogo democrático. E não: em nenhuma circunstância a sua lógica pode ser equiparada com a do nazismo, que provocou um genocídio de milhões de pessoas em diversos países.
Era isso que eu gostaria de ter respondido ao meu interlocutor desavisado. Mas me senti tão agredida por um discurso grosseiro, sem qualquer compromisso ou cuidado com os fatos, que eu mesma fiquei sem palavras.
(Transcrito do PÚBLICO-Brasil)