Freud com Hitler (Por Fernanda Hamann)
Nenhum de nós está livre do risco de cometer violências em nome de um Ideal que nos capture inconscientemente
atualizado
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Acabo de voltar de uma viagem à Alemanha, em que experimentei o famoso Turismo Nazi. Visitei o local em Nurembergue, onde Hitler fazia seus comícios diante de multidões inflamadas. Também estive no Centro de Concentração de Dachau, ainda mais impressionante. A preservação desses lugares de memória demonstra um esforço da Alemanha para não repetir os erros do ado. Mas a crescente popularidade do partido Alternative für Deutschland (Alternativa para a Alemanha, AfD), de inspiração nazi, preocupa os alemães progressistas, que se perguntam se esse esforço terá sido em vão.
Enquanto as testemunhas da II Guerra Mundial se tornam anciãs e escassas, muitos jovens enxergam nas pautas da extrema-direita a solução para a crise econômica no país. No lugar dos judeus, o bode expiatório são os imigrantes — ambos têm em comum a condição de Outro, percebido como ameaça a ser subtraída.
Hitler ascendeu ao poder pelo voto popular, quando o povo se sentia fragilizado e elegeu o que Freud chamaria de um “Pai forte”. O psicanalista judeu morreu em setembro de 1939, três semanas após o início da II Guerra. Teve seus livros queimados pelos nazis e precisou se exilar na Inglaterra. No livro Psicologia das massas e análise do eu (1921), descreveu o mecanismo inconsciente que leva um sujeito, na massa, a projetar parte do seu Eu sobre a figura de um líder poderoso, capaz de guiá-lo e apaziguar seu desamparo.
Numa massa organizada, o sujeito se identifica com o líder de tal modo que o situa no lugar do seu próprio Ideal — de pensamento, de conduta, etc. Isto explica o alto grau de obediência em que as pessoas se engajam em instituições como a Igreja e o Exército, em que o Líder Supremo não ite questionamento. E este não é um processo exclusivo dos alemães. É um processo humano, que aconteceu e acontecerá em outros contextos.
Em troca da sua servidão voluntária, a massa ganha a fantasia de segurança, pertencimento e irmandade. São todos “filhos” do grande líder. A mesma fantasia contagiou os golpistas que acamparam em Brasília e outras cidades do Brasil, entre 2022 e 2023, defendendo a narrativa de Jair Bolsonaro de que houve fraude na eleição de Lula. Os golpistas estavam irmanados na destruição dos palácios dos Três Poderes e no patriotismo que sempre alimentou os fascismos (apesar de Bolsonaro não esconder sua veneração patética pelos Estados Unidos).
Segundo Freud, tais projeções tendem a ocorrer em qualquer massa organizada em torno de um líder forte. A rigor, nem eu nem você somos seres humanos superiores, livres de cair nessa armadilha. Aliás, a crença na superioridade do “nós” em relação ao “eles” é a essência do supremacismo nazi.
Nenhum de nós está livre do risco de cometer violências em nome de um Ideal que nos capture, inconscientemente, num momento de vulnerabilidade. É preciso atentarmos para esse perigo, para resistirmos a ele democraticamente, num mundo em que a crise parece o estado natural das coisas e as propostas autoritárias se apresentam como o caminho mais fácil.
(Transcrito do PÚBLICO-Brasil)